Lembro-me claramente da vez em que uma mãe entrou no consultório com o olhar exaurido, dizendo: “Meu filho de três anos não fala comigo quando está irritado. Ele destrói os brinquedos e depois quer colo, mas não consegue dizer por quê.” Na minha jornada como jornalista e especialista em saúde mental infantil, essa cena se repetiu muitas vezes — e me ensinou que sintomas físicos e comportamentais quase sempre escondem uma vida emocional complexa. Foi aí que a pediatria psicanalítica apareceu como ponte: olhar médico e escuta profunda caminhando juntas.
Neste artigo você vai entender o que é pediatria psicanalítica, quando ela pode ajudar, como funciona na prática, quais são seus limites e evidências, e receber orientações práticas para pais e profissionais. Vamos juntos descomplicar o tema?
O que é pediatria psicanalítica?
Pediatria psicanalítica é uma abordagem que integra conhecimentos da pediatria com as bases teóricas e clínicas da psicanálise para cuidar da saúde emocional e corporal da criança. Não é apenas falar sobre sintomas: é estudar a história subjetiva da criança, o contexto familiar e as expressões psíquicas através do corpo, do brincar e das relações.
Em vez de tratar só a diarreia, a febre ou a crise de sono, a pediatria psicanalítica busca entender o “porquê” emocional por trás dos sinais corporais e comportamentais. Trabalha-se com observação, entrevistas com os pais e, quando possível, com intervenções que envolvem a criança diretamente (ex.: psicoterapia de orientação psicanalítica ou terapia de brincar).
Por que essa abordagem faz sentido?
Porque o corpo e a mente da criança não estão dissociados. Um choro persistente, problemas de sono, queixas somáticas frequentes ou regressões podem ser formas de comunicação emocional, especialmente em crianças que ainda não têm palavras para relatar sofrimento.
- Interpretação dos sintomas como mensagens emocionais;
- Foco na relação primária (pais-bebê/criança) como campo terapêutico;
- Uso do brincar como linguagem e meio diagnóstico/terapêutico;
- Integração com cuidados pediátricos convencionais — vacinação, desenvolvimento físico, nutrição.
Quem são as referências e quais conceitos importantes?
Alguns nomes clássicos ajudam a entender a base teórica: Anna Freud (psicanálise infantil), Melanie Klein (uso do brinquedo como linguagem), Donald Winnicott (objetos transicionais, holding), e autores contemporâneos que discutem vínculos e apego. Também é útil conhecer teorias do desenvolvimento, como Piaget, para complementar o olhar clínico.
Instituições como a Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRAPSI) e a International Psychoanalytical Association oferecem diretrizes e formação para profissionais que atuam com crianças.
Quando procurar pediatria psicanalítica?
Nem toda dificuldade infantil exige esse enfoque, mas vale buscar avaliação quando:
- Sintomas emocionais ou comportamentais persistem (choros excessivos, agressividade, regressão);
- Queixas somáticas sem causa médica aparente (dores de barriga, náuseas, cefaleia recorrente);
- Dificuldades de vínculo com cuidadores (recusa persistente de contato, apego ansioso);
- Trauma, separação, luto ou mudanças familiares que impactam o desenvolvimento;
- Intervenções médicas repetidas que a criança internaliza de forma dolorosa.
Como é o atendimento na prática?
Um atendimento típico envolve:
- Entrevista inicial com os cuidadores — história de vida, rotina, padrões de sono e alimentação;
- Observação da criança no brincar ou em interação com os pais;
- Sessões regulares (podem ser semanais ou quinzenais) de psicoterapia infantil ou de orientação para os pais;
- Articulação com pediatras, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e escolas quando necessário.
Exemplo prático: num caso de birras intensas, ao invés de apenas prescrever medicação, a equipe pode analisar eventos precipitantes, estratégias parentais e oferecer intervenções que ajudem a criança a simbolizar a raiva (por exemplo, através do brincar), reduzindo a somatização.
Ferramentas e técnicas usadas
- Terapia de brincar — a criança expressa conflitos e fantasias pelo jogo;
- Psicoterapia de orientação psicanalítica — sessões com criança e/ou pais para elaborar significados;
- Parent-infant psychotherapy — trabalhar o vínculo desde os primeiros meses;
- Observação e relatórios integrados com pediatra para compreender implicações físicas;
- Encaminhamentos multidisciplinares quando necessários (neuropediatria, endocrinologia, fonoaudiologia).
O que a pesquisa diz? Evidências e limites
Há evidências de que intervenções precoces que cuidam do vínculo e da saúde mental infantil melhoram desfechos sociais e emocionais (ver revisões da OMS e estudos sobre saúde mental infantil). A Organização Mundial da Saúde destaca que 10–20% das crianças e adolescentes no mundo sofrem de transtornos mentais (fonte: WHO).
No entanto, a psicanálise enfrenta críticas por falta de grandes estudos randomizados típicos da medicina baseada em evidências. Isso não invalida a experiência clínica ou os benefícios relatados por famílias. A tendência atual é combinar abordagens: integrar técnicas psicanalíticas com intervenções com evidência empírica, sempre em equipe multiprofissional.
Controvérsias e transparência
Existem diferentes correntes dentro da psicanálise e divergências sobre métodos e interpretações. É importante ser claro: a pediatria psicanalítica não substitui cuidados médicos urgentes, nem é uma solução milagrosa. E há limites éticos — intervenção precoce deve respeitar confidencialidade, autonomia dos pais e bem-estar da criança.
Orientações práticas para pais
Se você acha que seu filho pode se beneficiar de uma abordagem psicanalítica, comece por:
- Buscar um profissional com formação reconhecida em psicanálise infantil e experiência com crianças;
- Observar padrões: quando os episódios acontecem, quem está presente, mudanças recentes na rotina;
- Manter rotina consistente de sono e alimentação — estabilidade ajuda a regular o mundo interno da criança;
- Colocar limites afetivos: firmeza com empatia. Crianças precisam de fronteiras seguras;
- Registrar comportamentos e sintomas para compartilhar com o profissional na avaliação inicial.
Casos reais: um exemplo que marcou
Trabalhei com uma família cuja filha de cinco anos apresentava dores de barriga recorrentes. Exames físicos eram normais. Na escuta, veio à tona uma nova irmãzinha e a tensão entre os pais. Com sessões que incluíram orientação parental e espaço para a criança brincar, emergiu o medo de perder o afeto. Em seis meses, as dores diminuíram e a família encontrou formas de incluir a criança nas rotinas afetivas. Foi um processo lento, mas transformador.
Perguntas frequentes (FAQ)
1. Pediatria psicanalítica é o mesmo que psicoterapia infantil?
Não exatamente. Psicoterapia infantil é uma prática clínica. Pediatria psicanalítica integra essa prática com avaliação e manejo pediátrico, privilegiando a articulação entre corpo e mente.
2. Crianças pequenas podem “inventar” sintomas para chamar atenção?
Os sintomas são formas reais de sofrimento. Mesmo que sirvam para comunicar uma necessidade, isso não os torna menos legítimos. O trabalho clínico é entender o que está sendo comunicado e ajudar a criança a nomear e regular esse sofrimento.
3. Quanto tempo dura o tratamento?
Depende do caso. Pode variar de meses a anos. A consistência e a qualidade da aliança terapêutica são fatores cruciais.
4. É preciso usar medicamentos?
Medicamentos podem ser necessários em alguns transtornos (ex.: depressão grave, TDAH), mas a decisão é multidisciplinar. A pediatria psicanalítica prioriza intervenções relacionais, deixando a medicação para quando for clinicamente indicada.
Conclusão
A pediatria psicanalítica oferece um olhar ampliado sobre a criança: uma escuta que respeita a singularidade, integra corpo e mente e trabalha a partir do vínculo. Não promete soluções rápidas, mas convida a uma jornada de compreensão e cuidado profundo — muitas vezes exatamente o que uma família precisa para transformar sofrimento em crescimento.
Se você é pai, mãe, cuidador ou profissional, lembre-se: buscar ajuda precoce faz diferença. Observação, escuta e intervenção atenciosa salvam caminhos de desenvolvimento.
FAQ rápido de dúvidas comuns
- Quando procurar? — Sintomas persistentes, queixas somáticas sem causa, mudanças no vínculo.
- Quem atende? — Profissionais com formação em psicanálise infantil e experiência pediátrica articulada.
- É só para problemas graves? — Não; pode ajudar em questões de rotina emocional, preparo para mudanças e fortalecimento do vínculo.
E você, qual foi sua maior dificuldade com pediatria psicanalítica? Compartilhe sua experiência nos comentários abaixo!
Fontes e leituras recomendadas: Organização Mundial da Saúde — Adolescent mental health (https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/adolescent-mental-health); Federação Brasileira de Psicanálise (https://www.febrapsi.org.br). Além disso, para um panorama jornalístico e acessível sobre saúde infantil, consulte matérias em portais como G1.